Vitor Friary: Mães de bebês reborn e a questão da Saúde Mental

O que pode parecer um gesto de carinho inofensivo ou mesmo diferente está se transformando em um fenômeno social, e hoje eu quero discutir a perspectiva psicológica desse fenômeno com vocês

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Imagem gerada por Inteligência Artificial

Em várias cidades do Brasil, tem se tornado cada vez mais comum encontrar mulheres eando com carrinhos de bebê, mas sem um bebê real dentro dele. Ao invés de bebês reais, ali repousam bonecas hiper-realistas, chamadas bebês reborn. Algumas dessas mulheres não apenas os tratam como filhos. Pode levá-los ao médico, ao batismo, e até solicitam atendimento prioritário em repartições públicas. O que pode parecer um gesto de carinho inofensivo ou mesmo diferente está se transformando em um fenômeno social, e hoje eu quero discutir a perspectiva psicológica desse fenômeno com vocês.

Os bebês reborn surgiram como um nicho de colecionadores, mas logo encontraram um espaço terapêutico. São frequentemente utilizados no cuidado com idosos com demência, em clínicas de saúde mental, ou para ajudar mulheres em luto de bebês ou problemas de fertilidade. O toque, o peso e o realismo do silicone ativam circuitos afetivos profundos. No entanto, quando a boneca a a ser tratada como um bebê vivo, podemos cruzar uma fronteira entre uma simples representação de uma criança e o verdadeiro delírio.

Esse tipo de confusão entre fantasia e realidade é mais comum em situações de sofrimento psíquico intenso. Em um mundo onde muitas mulheres enfrentam solidão, negligência, luto e ausência de cuidado, o reborn pode emergir como substituto emocional de modo a trazer conforto e segurança. Mas até que ponto isso é saudável?

Um estudo alemão publicado em 2025 no Journal of Clinical and Scientific Research apresenta o caso de uma mulher alemã com deficiência intelectual leve e transtorno de personalidade borderline que acreditava ser mãe de uma boneca reborn chamada Laura-Marie. Ela chegou a relatar que havia dado à luz, mostrava fotos da boneca em seu celular e contava uma narrativa detalhada sobre o pai da criança. Em momentos de menor convicção, itia que era apenas uma boneca, mas ainda assim dizia: “Eu a amo”.

Esse caso, analisado pelos psiquiatras Vera Rössler e Philipp Sand, foi classificado como um exemplo raro de delírio de maternidade, um tipo de transtorno em que a pessoa desenvolve convicções falsas e bastante resistentes, sobre estar grávida, ter dado à luz ou ser mãe. Esse caso levanta questões diagnósticas complexas e também sinaliza claramente a necessidade de uma abordagem sensível aos portadores dessas bonecas em situações reais do cotidiano, como a utilização de serviços públicos e particulares de saúde, e outros, especialmente em populações vulneráveis.

No Brasil, o fenômeno ganha contornos ainda mais complexos. Aqui, muitas mulheres que se vinculam a bebês reborn vivem em contextos de exclusão social, violência doméstica, perda de filhos ou abandono. O reborn, nesse contexto, funciona como ajuda para trazer conforto às emoções. A questão que fica para nós, o quanto que realmente esse ‘conforto’ é realmente funcional para o alívio de ansiedade ou da depressão dessas pessoas? Ou seriam apenas uma estratégia para evitar entrar em contato com sensações difíceis? O fato é que esse vínculo, quando não acompanhado, pode tornar-se um sintoma de sofrimento psicológico severo. A romantização de comportamentos que mascaram traumas, lutos não elaborados e transtornos mentais podem na verdade fazer com que o paciente fique cada vez mais vulnerável. Não se trata de ridicularizar essas mulheres, mas de perguntar o porquê que tantas mulheres recorrem a um filho de silicone em busca de sentido?

Com o aumento da visibilidade do fenômeno, o tema chegou ao Congresso Nacional. Entre abril e maio de 2025, três projetos de lei foram apresentados, dentre eles o PL 2326/2025, do deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP), propõe a proibição de atendimentos a bonecos reborn no SUS e em unidades de saúde privadas conveniadas. Estabelece sanções para profissionais e instituições que permitirem o atendimento. Já o deputado Dr. Zacharias Calil (União Brasil-GO), busca impedir que pessoas com bonecas reborn usufruam de direitos como atendimento preferencial ou uso de assentos reservados, prevendo multas que podem chegar a vinte salários mínimos. Esses projetos refletem o embate entre o desejo de ordenar o uso de recursos públicos e a necessidade de oferecer cuidado humanizado. A polarização entre discursos de políticas públicas que visam por um lado “proibir” e por outro “acolher” revela a urgência de políticas públicas que entendam a complexidade desse fenômeno.

O debate sobre os reborns nos convoca a olhar para além da situação em si. Por trás de cada boneca, de cada carrinho empurrado por uma mulher solitária, pode haver uma história de abandono, luto, infertilidade, psicose, ou apenas a ausência brutal de vínculos significativos. Os profissionais de saúde mental devem estar atentos: nem toda mulher que cuida de uma boneca sofre de um transtorno mental grave; mas muitas, sim, estão pedindo ajuda para alguma negligência de afeto e segurança em suas vidas. Na clínica eu busco compreender porquê o valor da maternidade ou da paternidade é tão valiosa para aquele sujeito ao ponto de gerar a necessidade de cuidar de um bebê não-real. A busca por essa informação deve ser primordial ao invés de somente ficarmos focados na perplexidade do fato em si.

O fenômeno das mães de bebês reborn não é sobre bonecas. É sobre o que falta. A falta da escuta. A falta do acolhimento, do cuidado psicológico qualificado, especialmente para as mulheres pobres, negras, solitárias, abandonadas. O reborn é um sintoma, não a doença. E como todo sintoma, ele fala se estivermos dispostos a escutar.

Talvez o que essas mulheres mais desejem não seja um filho de silicone, mas o reconhecimento da sua dor, do seu afeto, da sua humanidade.

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