Introdução
Na última semana, o Supremo Tribunal Federal formou maioria para decidir que o crédito superpreferencial previsto no art. 100, § 2º, da Constituição Federal também está sujeito à sistemática do precatório, mesmo quando devido a credores idosos ou acometidos por doenças graves. A decisão, que aparentemente reforça o rigor fiscal e o controle sobre as dívidas públicas, gera preocupação quanto à efetividade dos direitos fundamentais e à igualdade de tratamento no sistema de Justiça.
Este artigo analisa os fundamentos da decisão do STF, suas repercussões jurídicas e sociais e, sobretudo, a forma como revela a persistência de uma gramática da (des)igualdade jurídica no Brasil. Trata-se também de uma homenagem ao Professor Roberto Kant de Lima, que faleceu na última segunda-feira. Professor, colega e amigo, ele foi quem despertou em mim, ainda nos tempos de mestrado, as inquietações sobre a forma como o sistema jurídico brasileiro reproduz desigualdades.
1. O que decidiu o STF
No julgamento do RE 1.326.178/SC, o STF formou maioria definindo que, mesmo quando o credor se enquadra nas condições de prioridade previstas constitucionalmente (idade, doença grave ou deficiência), não há possibilidade de pagamento imediato fora da sistemática do precatório. Em outras palavras, o direito à prioridade não suprime a necessidade de observância da ordem cronológica e do regime fiscal de requisição via precatório, salvo se o valor se enquadrar no limite das requisições de pequeno valor (RPVs).
A tese sugerida pelo Ministro Zanin, relator, foi a seguinte: “O pagamento da parcela superpreferencial prevista no § 2º do art. 100 da Constituição da República deve observar o regime de precatório, sendo vedado o seu cumprimento imediato sem a expedição da requisição, salvo se o valor devido não ultraar o limite das requisições de pequeno valor.”
2. O regime jurídico da superpreferência
A superpreferência, prevista no art. 100, § 2º da Constituição Federal e regulamentada pela Resolução CNJ nº 482/2022, confere prioridade no recebimento de precatórios de natureza alimentícia a:
- Credores com 60 anos ou mais;
- Portadores de doenças graves;
- Pessoas com deficiência.
Essa prioridade, porém, é limitada a um valor determinado por lei, sendo o restante do crédito mantido na ordem cronológica de pagamento. A decisão do STF, ao exigir a expedição formal de precatório mesmo para a parcela superpreferencial, reforça o controle orçamentário e reafirma o entendimento de que a prioridade não se confunde com imediatez no pagamento.
3. A tensão entre igualdade formal e desigualdade real
A decisão provoca reflexão sobre o alcance do princípio da igualdade no sistema jurídico brasileiro. Conforme discutido por mim e Fernanda Duarte no artigo “A impossibilidade da igualdade jurídica no Brasil”, há uma gramática decisória que naturaliza a desigualdade, operada por uma lógica do contraditório, autorreferente, bricoleur e seletiva na aplicação do Direito.
Casos semelhantes são tratados de forma desigual, e o discurso da legalidade frequentemente serve para justificar tratamentos desiguais. No caso dos precatórios, a exigência do rito formal, mesmo quando se trata de idosos, doentes ou pessoas com deficiência, revela a persistência de um modelo que privilegia a forma em detrimento da efetividade do direito de reconhecimento de tratamentos diferenciados.
4. O precatório como instrumento de desigualdade
A sistemática do precatório foi concebida como mecanismo de controle fiscal, mas na prática transformou-se em obstáculo ao o a direitos. A demora, a burocracia e a possibilidade de manobras orçamentárias fragilizam a proteção de direitos fundamentais.
A decisão do STF ignora o sentido protetivo da superpreferência, tratando a prioridade como uma exceção marginal no interior de um sistema cronicamente moroso. Não se trata de negar a necessidade de regras e limites fiscais, mas de reconhecer que, quando o Estado é condenado, deve pagar com a mesma urgência que exigiria do cidadão, respeitando-se a igualdade jurídica.
5. A herança de Roberto Kant de Lima
O pensamento de Roberto Kant de Lima nos ensina que o Direito não é neutro, tampouco igualmente aplicado. Ele identificou, com precisão etnográfica, como as estruturas jurídicas brasileiras operam seletivamente, reforçando hierarquias sociais.
Sua obra inspirou gerações a pensar criticamente a atuação judicial, a desigualdade na interpretação das leis e a necessidade de construir um Judiciário comprometido com o Estado Democrático de Direito. Este artigo é, portanto, uma forma de reconhecer sua contribuição, sua amizade e seu legado.
Considerações finais
A decisão do STF sobre o crédito superpreferencial explicita mais uma vez a gramática da desigualdade em um sistema que, na prática, opera com lógicas hierarquizantes. A exigência de precatório para idosos e doentes graves não é apenas uma questão de procedimento: é uma escolha política sobre quem deve esperar e quem pode ser atendido com urgência.
Revisitar essa decisão à luz da gramática da (des)igualdade jurídica é essencial para compreender que, muitas vezes, o discurso da legalidade serve para legitimar desigualdades, não para combatê-las.
Em tempos de crise econômica, judicialização excessiva e desconfiança institucional, é urgente retomar a centralidade dos direitos fundamentais e reconhecer que a justiça não pode ser adiada indefinidamente para quem dela mais precisa.
Excelente trabalho! Parabéns, Prof. Dr. Rafael Iorio por trazer à luz uma questão que retrata as assimetrias entre o Estado e o cidadão. A minorias, dotadas de maior poder econômico, armam suas lanças para combater o Estado, enquanto as maiorias, em situação de vulnerabilidade econômica e social, são reduzida a condição de sujeitos de direito (sem direitos).