1. Introdução: Igualdade que se constrói com justiça
A ideia de que todos são iguais perante a lei é um pilar do Estado Democrático de Direito. Mas, no Brasil, onde as desigualdades têm raízes profundas na história de escravidão, exclusão e no mito da democracia racial. Essa igualdade muitas vezes esbarra em entraves invisíveis. Na luta para superá-los, o país adotou as chamadas ações afirmativas, entre elas, as cotas raciais — políticas públicas que visam corrigir desigualdades históricas, estruturais e institucionais.
Neste cenário, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exercido papel crucial, não apenas ao validar essas políticas, mas também ao definir os limites, deveres e garantias que cercam sua aplicação — especialmente quando falamos da comissão de heteroidentificação, mecanismo que tem gerado debates nos concursos públicos, como na última decisão sobre o tema no MS 38.971/DF, de relatoria do Ministro Nunes Marques.
2. O que são as ações afirmativas? E o papel das cotas raciais?
Ações afirmativas são medidas temporárias, com fundamento constitucional, que buscam promover a isonomia entre grupos historicamente discriminados. No Brasil, elas ganham corpo a partir dos anos 2000, culminando com a promulgação da Lei nº 12.711/2012 (para o ao ensino superior) e da Lei nº 12.990/2014 (para concursos públicos).
As cotas raciais são um dos exemplos mais conhecidos. Elas reservam um percentual de vagas para pessoas pretas e pardas nos processos seletivos de universidades públicas e concursos públicos, com base nos dados do IBGE sobre a composição racial da população brasileira.
3. A jurisprudência do STF sobre cotas raciais
Em 2012, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 (mais conhecida como o “caso da UNB”), o STF declarou constitucional a adoção de cotas raciais por universidades públicas. O relator, Ministro Ricardo Lewandowski, afirmou que tais medidas não ferem o princípio da igualdade, mas o realizam em sua forma substancial.
Mais tarde, com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7654, o STF reforçou o entendimento de que o Estado pode, sim, adotar medidas específicas para combater desigualdades raciais. Foi a partir desse conjunto de decisões que a Justiça ou a reconhecer o papel central das cotas no combate ao racismo institucional.
4. O desafio da autodeclaração e as fraudes nos concursos
As cotas raciais têm um elemento delicado: a autodeclaração. Se adotada como único critério, bastaria ao candidato afirmar ser negro ou pardo para ar as vagas reservadas. Este critério por si só poderia levar a fraudes, ou seja, pessoas sem traços fenotípicos associados à negritude declarando-se negras para obter vantagens indevidas.
Foi diante desse problema que surgiu a comissão de heteroidentificação: um grupo de pessoas treinadas para verificar, de forma objetiva, se a autodeclaração corresponde à realidade fenotípica do candidato.
5. O que é a comissão de heteroidentificação?
A heteroidentificação é um mecanismo complementar à autodeclaração. Não busca investigar a origem ou a ascendência do candidato, mas sim sua aparência social: como a pessoa é percebida socialmente, com base em traços como cor da pele, cabelo e fisionomia.
O critério é fenotípico. Isso significa que a autodeclaração só será aceita se compatível com o conjunto de características visuais que identificam uma pessoa como preta ou parda, conforme os parâmetros do IBGE e os marcos das políticas afirmativas brasileiras.
6. A decisão do STF sobre o concurso da magistratura do TJRJ (2025)
Em decisão proferida em maio de 2025, o STF reafirmou a validade da comissão de heteroidentificação, ao analisar a desclassificação de um candidato no concurso da magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).
O candidato havia sido aprovado na prova escrita, mas foi desclassificado após a comissão avaliar que ele não apresentava traços fenotípicos compatíveis com a autodeclaração. Ele recorreu, alegando nulidade no procedimento e falta de fundamentação.
O relator, Ministro Nunes Marques, negou o pedido, destacando que:
- a comissão foi composta por membros capacitados e plurais;
- o candidato teve a oportunidade de apresentar recurso;
- o procedimento seguiu os princípios da legalidade e motivação suficiente.
Com isso, o STF consolidou o entendimento de que a atuação da comissão, quando observados os direitos de defesa e a composição plural, é legítima e necessária para garantir a integridade das cotas raciais.
7. A exigência de fundamentação e transparência
Em decisões anteriores, o STF já anulou desclassificações de candidatos quando identificou falta de fundamentação nas conclusões da comissão. Isso ocorreu, por exemplo, no julgamento relatado no site Consultor Jurídico, em que o Tribunal reconheceu a necessidade de motivação mínima, sob pena de violar os princípios do devido processo legal.
Assim, a jurisprudência caminhou no sentido de que:
- A comissão tem poder técnico, mas não discricionário absoluto;
- Suas decisões devem ser fundamentadas e recorríveis;
- O candidato deve ter o aos elementos usados para decisão.
8. Aparência, identidade e o debate sobre o “pardo”
Um dos pontos mais debatidos no tema é a posição das pessoas pardas. Afinal, o conceito de “pardo” é fluido, socialmente variável e historicamente ambíguo. O artigo publicado no JusBrasil, intitulado “Heteroidentificação do pardo: só a aparência importa?”, levanta esse dilema: até que ponto a aparência pode anular uma identidade construída cultural e subjetivamente?
Apesar da tensão, o STF tem mantido o entendimento de que a política pública exige objetividade, e a aparência (critério fenotípico) é essencial para assegurar a efetividade da política.
9. O que dizem os defensores e os críticos das comissões
Defensores argumentam que:
- A heteroidentificação é necessária para evitar fraudes;
- A subjetividade da autodeclaração sem controle enfraquece a política;
- As comissões, se bem compostas e treinadas, reduzem desigualdades.
Críticos apontam que:
- O critério fenotípico pode excluir pessoas negras de pele clara;
- Há riscos de arbitrariedades e constrangimentos;
- A percepção de raça é socialmente complexa e regionalmente variável.
O desafio está em encontrar um equilíbrio constitucional entre a efetividade da ação afirmativa e a preservação dos direitos fundamentais dos candidatos.
10. A importância das ações afirmativas para o futuro do país
As cotas raciais não são um fim em si mesmas, mas um instrumento de reparação histórica e justiça social. Elas fazem parte de um processo mais amplo, que inclui:
- Fortalecimento da educação pública;
- Combate ao racismo estrutural;
- Valorização da identidade negra;
- Promoção da diversidade institucional.
Como enfatizado pelo STF em reiteradas decisões, as ações afirmativas são compatíveis com o princípio da igualdade, pois viabilizam tratamento diferenciado para se alcançar justiça.
11. Conclusão: Por que isso importa para todos nós?
A manutenção da comissão de heteroidentificação e a reafirmação das cotas raciais pelo STF não são temas s a candidatos de concursos públicos. São decisões que reverberam em toda a sociedade, pois tocam no cerne da construção de um Brasil mais justo e plural.
Em tempos de tensões identitárias e polarizações, é essencial que o Judiciário atue como guardião da Constituição — não apenas em sua letra, mas em seu espírito de inclusão e transformação social.
As políticas de cotas não dividem a sociedade; elas reconhecem suas feridas e propõem caminhos concretos para superá-las. E a Justiça, nesse percurso, deve ser o farol da isonomia entre os brasileiros.