Apostas online e vício em jogos: o que está por trás do avanço das BETs no Brasil

Popularizadas por influenciadores e normalizadas como fonte de renda, plataformas de jogos online estão ligadas à desigualdade, endividamento e colapso previdenciário.

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Recentemente, a participação da influenciadora digital Virgínia Fonseca, convocada para depor na I das Bets em 13 de maio de 2025, causou uma comoção nacional. Nesse meio-tempo, as redes sociais explodiram com um debate que já se arrasta há alguns anos: discussões intermináveis sobre apostas — do velho dilema moral à insistente dicotomia entre “joga quem quer” e o fato de jogos causarem dependência química. Debates tão estéreis que, embora tenham surgido com relativa antecedência, não impediram que as BETs avançassem com força total. 

Legalizadas, normalizadas e até glamourizadas — por vezes vendidas como “aplicativos de renda extra” —, essas plataformas infiltraram-se em todas as camadas da esfera pública. Compraram a credibilidade de jornais supostamente idôneos e a popularidade de milhares de influenciadores. Ainda assim, a maioria das pessoas segue sem compreender o verdadeiro problema das BETs. 

A chamada Lei Seca, implementada em 2008, não visava proteger alcoólatras, mas salvaguardar a sociedade — reduzindo significativamente os acidentes de trânsito causados por motoristas embriagados. De modo semelhante, o debate sobre a legalização de substâncias como a maconha, ou o combate ao crack, não se restringe aos usuários, mas abrange impactos sociais mais amplos, como o aumento da criminalidade e a formação de áreas de uso concentrado, como a “Cracolândia” em São Paulo. Vícios não são problemas isolados; eles geram ramificações profundas na sociedade. 

De forma análoga, o vício em jogos — também chamado de ludopatia — é reconhecido como patologia tanto pelo CID-11 (manual de diagnósticos da OMS, Organização Mundial da Saúde), com o código 6C50, quanto pelo DSM-5 (o manual de diagnósticos mais usado na modernidade) como “transtorno do jogo”. E, dos vícios anteriormente apresentados, talvez ele seja o que traga consequências mais devastadoras não por “destruir famílias” individuais, mas por promover a deterioração econômica sistêmica causada por uma redistribuição brutal de renda — dos mais pobres para uma elite absolutamente improdutiva, muitas vezes estrangeira. Trata-se de um dos vícios mais corrosivos justamente por parecer inofensivo enquanto mina, silenciosamente, as bases econômicas e sociais do país. 

Num país como o Brasil — onde a desigualdade social é um dos maiores entraves ao desenvolvimento, com um índice de Gini (principal índice de desigualdade social) em torno de 0,53 —, é irracional sustentar um modelo de negócios que agrava essa desigualdade e não gera valor real à sociedade. Além disso, grande parte das casas de apostas está sediada em paraísos fiscais, facilitando a evasão de capitais. 

Segundo estimativas do Banco Central, os brasileiros gastaram entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões por mês com apostas esportivas entre janeiro e março de 2025 — o que projeta um total anual entre R$ 240 e R$ 360 bilhões. Esse montante supera, mesmo nas projeções mais conservadoras, os investimentos públicos federais em áreas essenciais: em 2025, a educação recebeu R$ 226,4 bilhões; a saúde, R$ 245,1 bilhões; a ciência e tecnologia, R$ 13,7 bilhões; e a cultura, apenas R$ 4,25 bilhões. 

R$ 100 bilhões deixaram de circular no varejo por conta das apostas

A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estimou que, em 2024, o mercado de apostas desviou aproximadamente R$ 100 bilhões que poderiam ter sido injetados no consumo de bens e serviços do varejo, impactando negativamente diversos setores produtivos. 

De acordo com o Datafolha, cerca de 15% da população brasileira já realizou apostas online — número que salta para 30% entre jovens de 16 a 24 anos, justamente a parcela mais vulnerável, desempregada e suscetível à promessa fácil de enriquecimento. Pesquisa divulgada no Datahub aponta que o setor de apostas cresceu 734,6% entre 2021 e abril de 2024; são cerca de 63,33 milhões de brasileiros, sendo que, segundo o Senado Notícias, 52% têm renda inferior a dois salários mínimos. A Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) e a AGP Pesquisas também fizeram a divulgação de pesquisa que revelou que 63% de quem aposta já teve a renda comprometida. O mesmo estudo diz ainda que 23% já deixaram de comprar roupas em função do hábito de apostar, 19% deixaram de fazer supermercado, 14% pararam de comprar produtos de higiene e beleza, e 11%, de gastar com saúde e medicações. Além disso, 42% dos apostadores têm dívidas em atraso. 

Paralelamente, o desemprego atinge 7%, a informalidade alcança 38,1% e cerca de 8,4 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar severa. Essa vulnerabilidade socioeconômica, somada a fatores como desnutrição, o limitado à educação de qualidade e exposição a toxinas ambientais — que, segundo estudos, podem reduzir o desenvolvimento cognitivo —, cria um terreno fértil para a exploração por apostas. Não por acaso, cerca de 14,4 milhões de brasileiros vivem com algum tipo de deficiência intelectual, segundo o IBGE. A hiperexposição às propagandas de apostas — frequentemente promovidas por comunicadores que gozam de alta confiança — atinge justamente essa população, alimentando falsas esperanças de ascensão econômica instantânea. 

Enquanto isso, cada vez menos brasileiros contribuem para o INSS — que opera com alíquotas entre 7,5% e 14% —, pressionado por uma base de contribuintes em declínio, resultado do desemprego, da informalidade e do envelhecimento populacional. A pirâmide etária se inverte, e a previdência pública se aproxima de um colapso. 

Além da crise previdenciária, o endividamento pessoal agrava-se com juros abusivos, que ultraam 43% ao ano. O poder de compra despenca, e parte dos recursos de programas sociais começa a ser redirecionada — consciente ou inconscientemente — para o vício recém-adquirido por milhões de brasileiros. Esse dinheiro é drenado por plataformas de BETs e cassinos online, muitas delas sediadas em paraísos fiscais e completamente desconectadas da economia real. 

O cenário é desolador: a fragilidade econômica alimenta a inflação — já acima de 5,5% ao ano — e pressiona uma taxa Selic em 14,75%. Os efeitos em cadeia agravam o desespero, a violência, a evasão escolar, o colapso da previdência e a desordem social. 

E não, a regulamentação das BETs com fins arrecadatórios não compensará os danos causados. Programas de redistribuição de renda têm limitações, e a inflação potencial gerada por esse modelo de negócio supera — e muito — qualquer possibilidade de arrecadação. Um problema criado por um mercado que sequer precisava existir. 

Desde que o Brasil implementou políticas antitabagistas, incluindo a proibição da publicidade de cigarros, o percentual de fumantes caiu de 35% em 1989 para 12,6% em 2019, uma redução de 64%. A Anatel possui perfeita capacidade para bloquear casas de apostas no território nacional. Segundo o Senado Notícias, desde outubro de 2024, ela já atuou no bloqueio de mais de 8.560 sites de apostas irregulares. Embora dependentes possam usar VPNs para burlar isso, a combinação dessas medidas já seria suficiente para reduzir drasticamente o uso dessas plataformas a curto, médio e longo prazo. 

Enquanto isso, os responsáveis por zelar por essa mesma população — influenciadores, veículos de mídia e políticos dos mais variados campos — estão ocupados demais lucrando com as BETs para perceber que se trata de uma armadilha nacional. E, se nada for feito, nem mesmo o mais rico dos brasileiros sairá ileso. 

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